Permito-me a transcrição directa da crónica de Maria José Nogueira Pinto. Um texto lúcido de uma cristã. Diário de Nóticias de Hoje
Nenhum tempo litúrgico é tão marcado pelo silêncio como este que antecede e prenuncia os trágicos passos do Calvário, a via sacra e a morte de Cristo, o Nazareno.Silêncio, trevas e uma urgência na precipitação dos factos. Poucos dias mediaram entre a entrada triunfal em Jerusalém, por entre multidões entusiasmadas, e a prisão, o julgamento sumário, o peso do madeiro, a coroa de espinhos, a flagelação, os pregos trespassando os membros, a sede, o medo e o abandono. Porque tudo estava dito, tudo tinha sido, muito tempo antes, profetizado, tudo tinha de acontecer. Ele, melhor que ninguém sabia que tinha chegado a hora, o tempo de vésperas, o fim e o princípio. Por isso não se defendeu, não replicou, não fugiu. Entregou-se como o cordeiro imolado, tal como estava escrito. Nesta dimensão divina coube a dimensão humana dos acontecimentos: as maquinações políticas, o confronto dos poderes terrenais, a cedência à manipulação popular. E a preocupação dos mais conscientes ou dos mais compassivos, os sonhos assustadores da mulher de Pilatos e as poucas vozes que procuravam contrariar o "processo" de Jesus.Mas a grande maioria, imagino, assistia a tudo como se de um espectáculo se tratasse. Cristo era uma figura popular, carismática, incómoda, que desafiara os poderes constituídos. Mas seria tão poderoso como dizia ser? Esse homem que se designava filho de Deus - por este crime o condenaram - ía mesmo morrer, tal como os dois ladrões igualmente condenados à crucificação? Ele, que ressuscitara Lázaro, dera a vista aos cegos, curara os leprosos e afirmara, mesmo, que ergueria o Templo em três dias, porque não se salvava a si mesmo? No meio desta grande agitação do povo e das instituições, dos juízes e juízos, da exaltação das massas e das subtilezas da hipocrisia política, do sofrimento de Maria e de João, da traição de Judas, da cobardia de Pedro, da compaixão de Verónica, o que marca é o profundo silêncio de Cristo. Porque só o silêncio podia suportar o peso do mistério: não há ressurreição sem morte, nem encarnação sem humanidade. Esta tinha de ser uma morte humana, uma morte igual a qualquer outra morte violenta e sanguinária, com o mesmo sofrimento físico, o mesmo derramamento de sangue, o mesmo sucumbir do corpo, o mesmo parar do coração. E o mesmo medo, a mesma recusa, o mesmo abandono.O sentido último desta morte só se torna claro pela ressurreição, por isso o tempo entre um acontecimento e outro é de incerteza, dúvida e descrença para quase todos. Só Ele sabe com clareza o que se está a passar e porquê. Mas também o medo o divide, a dúvida o atormenta como se, no momento em que todo o seu corpo cede, o seu espírito ficasse, ainda que por brevíssimos instantes, preso à sua dimensão humana. Já no horto das Oliveiras, quando o vêm prender, murmura "Pai, afasta de mim este cálice"; pregado na cruz, ciente que tudo está consumado, exclama "Eli, Eli, lemá sabachthani" que quer dizer "Meu Deus, Meu Deus, porque me abandonaste?" Uma pergunta cuja resposta Cristo sempre conhecera... Penso quão actual é esta extraodinária história. Todos os dias de todos os tempos, e do nosso tempo, homens e mulheres são perseguidos, maltratados, caluniados e mortos por amor da verdade e da justiça. A História da Humanidade está marcada por séculos e séculos de violência e nenhum desenvolvimento ou progresso conseguiram evitar, no tão próximo século vinte, matanças incontáveis em nome das mais falsas verdades e das mais ignominiosas doutrinas. Terá então valido a pena a paixão desse homem que revolucionou o seu tempo e os tempos que vieram até aos nossos dias ou, para os cristãos, o mistério da Encarnação, a tragédia da crucificação e o mistério da Ressurreição?Sem dúvida que sim. Esta é a nova aliança, que nos permite acreditar - mesmo sabendo que os homens, no seu exercício de liberdade entre bem e mal, vão claudicar muitas vezes - que o bem é uma escolha sempre a tempo, que toda a vida humana tem um sentido, que a redenção é todos os dias oferecida a cada um de nós e que, por tudo isto, a morte pode ser só uma passagem...
quinta-feira, março 20, 2008
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